BRASÕES DE ORGULHO

Os maiores estudiosos da atualidade afirmam que a superioridade da raça humana como a espécie dominante hoje se deve a uma combinação de 70% da habilidade de se adaptar e 30% de sorte. E o estudo de caso que melhor apoia essa ideia é a história dos meridianitas.

Depois da expulsão dos Ápires por Elcaris, o Branco, e seus aliados, muitas tribos nômades, das quais a maioria nem se quer participou das batalhas, acabou se apossando das vastas planícies férteis, de mata fechada ou pantanosas da região, sem qualquer resistência. Em pouco tempo, seus acampamentos ganharam muros, trancas, e a passagem de caravanas comerciais, especialmente dos arderanos.

Até onde se sabe, o que se conhece hoje por “meridianitas” foi formado por uma quantidade ainda incerta de povos distintos – o que justifica a diferença étnica comum no país, como a cor da pele, tamanho do cabelo, altura, etc – e que na maioria das vezes tinham barreiras culturais e rancores antigos e mal resolvidos que atrapalhavam o bom relacionamento entre eles. E como é comum entre os humanos, se dois grupos pensam de modo diferente, resolve-se o assunto através da guerra – uma herança dos ápires, talvez?

A ocupação dos povos se deu em um período também incerto, pois embora suas cidades tenham surgido depois da guerra contra os ápires, as tribos já vagavam na região há alguns séculos antes disso, pagando tributos aos Reis da Guerra na maioria das vezes. A partir do começo da Era dos Homens até o ano 400, as cidades foram ganhando autonomia e formalizaram um sistema de cidades-estado, onde cada povo com características em comum se protegiam atrás de grandes muralhas, mas sem ter qualquer empatia por grupos diferentes do seu. Pelo menos inicialmente.

Mas o que aconteceu em Elcaris aconteceu muito antes em Merídia, e de modo ainda mais segmentado. Cada cidade-estado declarou o seu próprio rei, o Cônsul, e insistia em resolver – leia-se agravar – as diferenças com a cidades-estado rivais. Violentos combates eram travados ano após ano, sem a interferência de invernos rigorosos, fazendo com que, por um longo tempo, seu desenvolvimento ficasse muito aquém de nações vizinhas que logo se tornariam potências em alguma especialidade. Exércitos pequenos e desunidos, tecnologia e táticas de guerra adaptadas para combates curtos e intermitentes, e poucos recursos, especialmente metais, fez deles uma grande nação de povos divididos, ocupando uma terra farta e espaçosa, mas sem capacidade real de defendê-la de invasores. Eles eram um alvo muito fácil de ser exterminado. 

Mas isso não aconteceu. Por quê?

Muitos séculos depois foi compreendido que a saída dos ápires acabou causando um grande desastre ecológico que poderia ter acabado com a raça humana em todo o centro-oeste do Grande Continente. 

Ápires não são apenas guerreiros, mas também grandes e orgulhosos caçadores. Seus hábitos e rituais de caça mantinham criaturas perigosas como dragões, mórons e insetos, afastadas da região ou sob rígido controle populacional. Sem eles, essas criaturas logo aumentaram em número e começaram a assolar os reinos vizinhos que, além de seus próprios conflitos, tinham que lidar periodicamente com criaturas selvagens.

É claro que esse problema logo chegaria nas grandes planícies, que rapidamente ficou infestada de todo tipo de ameaça. Os que moravam dentro das cidades muradas estavam mais – mas não totalmente – protegidos, mas os que viviam em vilarejos ou campos isolados não tinham a mesma sorte. Era comum que vespas rondassem campos de batalhas e levassem os corpos de vários soldados antes que tivessem a chance de serem enterrados. 

Nesta mesma época, Caçadores Profissionais passaram a ganhar fama em todo o mundo. Dominik Drator, Sunis, Seong Hwan, entre muitos outros, tinham uma vida emocionante, farta e curta enquanto lutavam com vários tipos de bestas. Mas em 1422, um caçador velho e cansado, decide mudar as regras do jogo: Felipe Deor, o Matador de Dragões, cria a Guilda de Caça de Edes-Carmesim, a maior Cidade-Estado meridianita. 

A iniciativa tem o pronto apoio do Cônsul de Edes-Carmesim, Demas Tatus, que financia sua construção sob a condição de que a Guilda levaria o Brasão da cidade e, consequentemente, estaria sempre apoiando os interesses e a honra de Edes-Carmesim.

Com seus métodos de treinamento, jovens esquadrões começaram a caçar e exterminar monstros e pragas por todo o território meridianita, e até mesmo em nações vizinhas. Não demorou para que outras grandes cidades-estados tivessem também as suas Guildas de caçadores ou mercenários, algumas até mesmo com mais de uma Guilda para diferentes especialidades.

Embora a maioria delas fossem negócios particulares, com raras exceções, uma boa parte fazia questão de ter um Brasão idêntico ou que identificasse claramente a qual cidade pertencia. Felipe Deor não fazia ideia, mas ele tinha matado dois cléperes com uma só cajadada: ao mesmo tempo que ele criou um sistema barato e promissor de treinamento e proteção, ele também deu às cidades-estado um meio de competição entre elas. As melhores Guildas traziam mais negócios para a cidade, tornando-a mais próspera e atraindo caçadores mais habilidosos. Não havia mais necessidade de guerrearem entre si. Um sistema que funcionaria muito bem por muitos séculos para uma nação composta por cidades extremamente orgulhosas – outra herança dos ápires, talvez?

Leave a Reply